Rio Salitre, na Bahia, seca e ameaça sobrevivência de comunidades rurais
No povoado da Lagoa Branca, na cidade de Campo Formoso (407 km de Salvador), o único restaurante oferece apenas tilápias de cativeiro, vindas de Sobradinho (BA). Os peixes endêmicos da região, como curimatá, mandi, dourado e piau-verdadeiro, não existem mais. O rio Salitre, vizinho da localidade, secou.
A desertificação de Campo Formoso, município com população estimada em 71 mil habitantes, abrange uma área de 80 km2 onde vivem centenas de famílias quilombolas, pequenos agricultores e comunidades tradicionais de fundo de pasto.
Além do assoreamento de trechos do rio Salitre, a degradação ambiental é marcada por solos improdutivos que obrigaram moradores a migrar. E o afluente do São Francisco não é o único exemplo do fenômeno.
Estudos indicam que são ao menos seis as comunidades rurais do chamado sertão do São Francisco cuja segurança hídrica e alimentar está ameaçada pela desertificação severa.
“Algumas famílias foram para Goiás, São Paulo e Sul. O problema é muito sério e não vemos iniciativa por parte do governo”, reclama Denilson da Silva, morador da Lagoa do Porco, comunidade sisaleira do município. Casas e roças abandonadas podem ser vistas às margens das estradas vicinais que cortam a zona rural de Campo Formoso.
Entre os que ficaram, a sensação é de nostalgia. “Eu já tirei muito feijão de arranca aqui. Os mais antigos pegavam jacaré… Mas, a partir da barragem de Ourolândia (BA), as águas do Salitre secaram”, lembra o agricultor aposentado Otávio da Silva, 87, na comunidade quilombola da Lagoa Branca.
A construção de 35 barragens na bacia hidrográfica do Médio Salitre é apontada como uma das causas da seca extrema e das erosões. Desmatamento da caatinga, sobrepastoreio e agricultura irrigada incompatível com os limites naturais do bioma também estão na raiz do problema, afirmam pesquisadores.
“Em Campo Formoso, a desertificação cárstica é um fenômeno jovem, mas perigoso”, explica Jémison Santos, professor da Uefs (Universidade Estadual de Feira de Santana).
O termo vem de “carste”, um dano considerado irreversível que ocorre quando ecossistemas tornam-se espécies de paisagens rochosas e desoladas. Um dos exemplos mais conhecidos no mundo são os desertos de Guangxi, na China.
“Funciona como uma espiral descendente. Um problema puxa outro e perde-se o controle do processo com a biota cada vez mais vulnerável”, completa Santos, que estuda o carste na Bahia. No estado, há 289 áreas suscetíveis à desertificação.
Além delas, há situações preocupantes espalhadas por oito estados do Nordeste e no norte mineiro. Essas áreas, destaca Santos, podem virar novos carstes.
De acordo com dados do Sima Caatinga (Sistema de Monitoramento e Alerta para a Cobertura Vegetal da Caatinga), da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), 13% da região Nordeste já estão transformados em deserto.
“Os estudos falam em seis núcleos clássicos de desertificação, mas o problema agravou-se nos últimos anos e dados de satélites de última geração mostram que são muito mais”, alerta Humberto Barbosa, coordenador do Sima.
O PAN-Brasil (Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca), principal iniciativa de enfrentamento da desertificação que o país já teve, está paralisado há 13 anos.
Procurado pela reportagem, o MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) afirma que um novo plano será lançado neste ano. Segundo a pasta, ele incluirá ações relacionadas a agricultura resiliente ao clima, agroecologia e convivência com o semiárido.
O ministério afirma ainda que dialogará com entes federados, instituições de pesquisa e organizações da sociedade civil para retomar projetos, além de restabelecer a CNCD (Comissão Nacional de Combate à Desertificação).
“O problema é regional, mas o impacto é nacional. Se não resolver, vai piorar muito. O plano vai precisar ser repactuado”, alerta o pesquisador José Roberto de Lima, ex-coordenador do PAN-Brasil, no MMA.
Além da secura dos rios, outra característica que se tornou marcante na paisagem de Campo Formoso são as voçorocas, buracos que chegam a cinco metros de profundidade.
“Minha mãe comprou o sítio na década de 1990 e já tinha voçoroca, mas o problema só piorou. Depois, veio a algaroba. Sonho em ver o Salitre correr de novo, mas, antes de tudo, sonho em acabar com a algaroba”, diz Joselina Pimentel, presidente da associação quilombola local.
A árvore invasiva compete pela pouca água disponível com espécies nativas como o ipê-amarelo e a quixabeira. No sítio da agricultora, as voçorocas estão a apenas 20 metros da casa, nos fundos da propriedade.
Na cidade, foram mapeadas 734 linhas erosivas, entre sulcos, voçorocas e ravinas.
Nesses locais, os solos expostos tornaram-se estéreis, alimentando um ciclo de miséria. Sem poder cultivar milho e cactáceas para alimentar os bodes e as ovelhas, as famílias veem sua renda diminuir.
Para Alisson Pereira, professor do IFB (Instituto Federal Baiano) que fez o levantamento das linhas erosivas na cidade, os moradores desconhecem o risco que correm.
“A chuva, que sempre foi fonte de alegria no sertão, virou motivo de medo. Quando vem, a enxurrada arrasta toneladas de terra para o leito do rio, arrastando tudo que tiver pela frente. As comunidades estão em perigo”, conta.
Ele acredita, porém, que existam soluções. “O problema pode ser revertido com educação ambiental, sobretudo dos jovens, e técnicas de restauro com plantio de nativas como maracujá-do-mato, licuri, umbu, ciriguela.” (BN)